Nós decidimos há um tempo que não trataremos dias de luta como datas episódicas para abordar esta ou aquela temática. Porque as lutas e as vidas não se resumem a um mês ou dia específico, ainda que toda lembrança seja importante. Talvez, seja de tanto acompanhar os clubes que em nada se comprometem com as pautas abordadas, mas adoram fazer marketing e ganhar popularidade esbanjando sua suposta preocupação com determinadas demandas de minorias sociais, mas, efetivamente, não movem uma palha para que as coisas sejam diferentes. Assumem as hierarquias sociais e só aparentam questionar ou reconhecê-las quando é economicamente conveniente. Assim, passamos a repensar a dimensão das nossas ações lutando por um futebol praticado por mulheres que seja cada vez mais democrático e plural.

Entretanto, esse mês foi controverso demais para que a gente pudesse ficar calada. Porque no Dia da Consciência Negra não foi possível celebrar as resistências históricas. Porque João Alberto Silveira Freitas não pôde ir ao supermercado e voltar para casa em paz. Porque o Beto é mais um corpo negro que cai nas estatísticas e nada, absolutamente nada é feito diante disso, a não ser a insistência bizarra de negar que o racismo é estrutural na nossa sociedade. E esse movimento, que atua junto a diversos outros negacionismos e conservadorismos sociais, parece crescer no contexto do futebol. E, assim, boa parte das pessoas que entendem o futebol, bem como outras práticas esportivas, como um momento de suspensão insistem em dizer que algumas lógicas racistas são parte do tom jocoso ou das lógicas construídas pelo contexto e que em nada diria de violências ou opressões.
Puxando para o futebol feminino eu poderia citar vários exemplos ressaltados por uma atleta que admiro muito: a Paçoca. Mas focando nos últimos eventos, o Gama, clube do Distrito Federal, protagonizou mais um dos descasos vinculados à modalidade. O time de mulheres foi supostamente arrendado por um homem chamado Ítalo Batista Teodoro Rodrigues, que por meio de promessas de boa qualidade de trabalho e desenvolvimento de carreira, levou mulheres do Brasil inteiro para a formação da equipe. Essa participação, entretanto, se deu mediante a um empréstimo feito por ele, com as atletas, para garantir condições melhores de estada como, por exemplo, o pagamento de diárias em uma pousada, colocada como alojamento do time. Entretanto, esse homem sumiu após ser impedido de acompanhar um jogo do time, quando toda a situação veio à tona. Fugiu com o dinheiro, com as promessas e com os sonhos, deixando as jogadoras sem ter inclusive o que comer e onde ficar. O Clube, que, nesse acordo escuso, cedia a marca, disse não saber da situação enfrentada pelas jogadoras antes do relato e menciona se sentir lesado, tendo em vista que Ítalo nem ao menos inscreveu um time completo para a participação no campeonato – o Candangão. Nessa dinâmica de empurra de responsabilidades, que para mim parecem no mínimo compartilhadas, o enfrentamento pra toda dificuldade fica a cargo das maiores vítimas do golpe: as atletas e a comissão técnica. E nesse processo essas mulheres seguem se ajudando. Para saber mais sobre isso, basta acessar o texto da Rê em que ela explica tudo com minúcia.
Tá bom! Mas o que isso tem relação com o que você estava mencionando antes sobre racismo? Então, boa parte dessas jogadoras que estão enfrentando essa dificuldade e que mesmo em meio ao caos se dedicaram aos treinos e aos jogos do campeonato são negras. Inclusive Ludymila Bárbara, que acumulou dívidas para abrigar as colegas de time que não residiam no Distrito Federal e que não sabe como vai lidar com toda essa situação. Quem quiser contribuir com as atletas, basta acessar aqui e/ou aqui.
É importante trazer essas situações, porque há um tempinho foi publicado aqui no Galo Delas um texto que alerta para a importância de discutir o futebol praticado por mulheres sem ignorar o gênero. E hoje a provocação vai no sentido de pensar de forma interseccional: se a gente pensar só o gênero e ignorar questões raciais contribuímos para que? Até que ponto a gente não esquece a raça e outros marcadores sociais da diferença para pensar o gênero? Inclusive até que ponto isso não limita nossas perspectivas e possibilidades de ação, tendo em vista que, na maioria dos casos, como menciona Angela Davis, raça informa classe?

Quando pensamos na lógica de gênero que atravessa as vivências de mulheres cis ou trans no futebol, já pensamos em uma diversidade de experiências. E quando trazemos a raça para essa dinâmica assimétrica, a multiplicidade é ainda maior. As questões se complexificam e as desigualdades parecem se acentuar. Vou fazer um convite agora para que a gente pense um pouco sobre quantas atletas negras você conhece na história dos esportes… e do futebol?
Pois bem, a gente ainda circunscreve boa parte da discussão sobre racismo nos esportes e no futebol, principalmente, às modalidades masculinas e em situações episódicas. E se na pátria de chuteiras não há espaço para todas as pessoas, como há muito já é denunciado, quando falamos de mulheres negras essa interdição toma outros contornos. Isso, porque a lógica do racismo implica em uma segmentação do corpo negro que, no caso das mulheres negras, tiram o corpo da lógica da feminilidade hegemônica frágil e branca. As mulheres negras são colocadas na esfera da prática futebolística, por serem vistas meramente como corpos: corpos sob os quais estão postos desejos externos e que seriam “naturalmente” fortes e hábeis. Esse processo ignora que haja subjetividade naquele corpo, vontade ou agência. E as desigualdades se perpetuam, porque esses corpos seriam racializados e segmentados enquanto em contrapartida, os corpos brancos, principalmente cismasculinos, são vistos como sujeitos e universais.
Nessa lógica socialmente consensuada sobre as desigualdades sociais que nos perpassam e que co-construímos, diversas atletas são esquecidas: Formiga, Aline Milene, Pretinha, Michael Jackson, Kátia Cilene, entre outras. E vejam que nem foi mencionada aqui as mulheres negras da comissão técnica, porque na lógica racista, como dito anteriormente, elas são lidas como corpos e não sujeitos. Deste modo, no contexto futebolístico elas deveriam cumprir com o esperado e não agir por si. Elas deveriam existir somente no espaço que lhes é permitido-concedido, numa dependência forçada de marcas, líderes, comandantes – cargos que como corpo, cuja intelectualidade não é reconhecida, não são possíveis galgar. Mas elas, a contragosto de muitos, (r)existem!

E pensando nessa (r)existência é que hoje viemos divulgar uma importante ação proposta por três pesquisadoras em parceria com o Ludopédio e com o Observatório da Discrimação Racial no Futebol: a série de 11 textos que vai discutir futebol e racismo, trazendo “diversas vozes para esse debate e sem ignorar quem protagoniza essa história”.
Com o intuito de romper com uma falácia de que no futebol não haveria dinâmicas racistas, bem como de publicizar e exaltar produções de teóricas/teóricos negras/negros, essa serie inaugurada com o texto “Racismo: a quem interessa pensar que foi diferente no futebol?”, vem como um compromisso ético-político para se pensar questões raciais no futebol. Ela visa estender esse compromisso a todas as pessoas que se dedicam a pensar esse campo esportivo-social-político de forma pautada num posicionamento localizado e responsável sobre o contexto futebolístico. É uma lógica de descolonizar o saber produzido, até então, sobre pessoas negras no futebol que amplia a nossa perspectiva sobre essa vivência e nos implica em falar sobre as lógicas de precarização diferencial e politicamente forjadas às quais negras e negros são submetidos na nossa sociedade.
Assim, pensar o racismo no futebol seria num primeiro momento um desaprendizado, e depois um reaprendizado, que implica em dar espaço à voz de sujeitas e sujeitos que até então não são ouvidos, já que suas vozes são tidas como ruídos num mundo governado pela branquitude. Por fim, numa provocação mais que bem vinda, necessária, o texto inicial problematiza gênero e raça lembrando: (i) do quanto Marta, na história do futebol, aparece sobre um holofote da branquitude; (ii) o quanto outras jogadoras negras, como as mencionadas anteriormente, são esquecidas nessa história ; (iii) o quanto é compromisso de todas as pessoas que esse tema atue de forma a romper com a lógica branca que sustenta o contexto futebolístico.